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Criadores da sombra

Posted by Magali



“Freud e Jung tornaram impossível pensar na natureza humana como algo que não seja um profundo mistério. Como a ponta de um iceberg, somente uma pequena fração sua é visível ao mundo físi­co. Sem ser vista e frequentemente ignorada, a alma humana é um lugar de ambiguidade, contradição e paradoxo. E é assim que deve ser, porque toda experiência da vida, que é manifes­tação da alma, é resultado de contraste. Você não tem expe­riência na ausência do contraste: luz e sombra; prazer e dor; acima e abaixo; à frente e para trás; quente e frio. Se não hou­vesse divisões, não haveria manifestação. A consciência seria um campo, vastamente, árido, como um deserto. Você estaria ciente de tudo, porém, de nada em particular.
Desse modo, para ter uma manifestação, você precisa de energias opostas. Por isso inimigos declarados também são aliados ocultos. Osama bin Laden e George Bush, por exemplo, criaram um ao outro. Na superfície, eram inimigos; po­rém, no fundo, eram aliados. É um princípio genérico. Jung tinha cora­gem para ver que cada um de nós precisa de um lado sombrio para poder desenvolver um lado melhor. É um fato básico de antropologia física que no Homo sa­piens uma grande parte do cérebro, o córtex, é dedicada às fun­ções superiores. O córtex nos permite discernir; ele dá origem ao amor e à compaixão. A religião nasceu no córtex, junto com nossos conceitos de céu e inferno. Sem o cérebro superior, jamais teríamos desenvolvido a leitura e a escrita, a matemática e a arte.
Mas que choque desencavar os restos dos homens de Neandertal e descobrir que aquela espécie não somente tinha córtex enormes, mas apenas ligeiramente maiores que os nossos. No entanto, eles percorreram a Europa caçando imensos ani­mais por 400 mil anos, duas vezes mais tempo que o Homo sapiens está por aí, usando apenas uma ferramenta: uma lan­ça pesada com uma pedra pontuda amarrada na ponta. Sequer progrediram ao uso de uma lança mais leve que pudessem arre­messar. Em vez disso, usavam suas lanças pesadas para atacar suas presas gigantes, tais como mamutes peludos e leões das ca­vernas, em ataques corpo a corpo, cravando a pedra pontuda no animal. Como resultado, quase todos os esqueletos masculinos de Neandertal apresentam múltiplas fraturas. Mas os animais imensos reagiam e, por quase meio milhão de anos, o cérebro do Neandertal não conseguiu perceber que seria muito mais seguro fazer armas mais leves, que pudessem ser arremessadas a distância.
A evolução dos seres humanos dependia não do cérebro físico, mas da mente que o utilizava. No domínio do inconscien­te, o aprendizado ocorria em silêncio, sem ser visto. O Homo sapiens era capaz de usar o cérebro para questões muito mais complexas que seus ancestrais. Uma vez que a mente perce­beu como fazer armas melhores, a vida se tornou mais fácil. A agricultura substituiu a caça. À medida que a vida ficou mais complicada, a linguagem surgiu, para que as pessoas pudes­sem trocar idéias.
Em outras palavras, Jung deparou com um local secreto, onde estava toda a ação. O inconsciente coletivo é a biblioteca da mente, um depósito de toda a experiência passada da qual podemos lançar mão no presente. A pergunta "Quem sou eu?" nunca tem uma resposta permanente. O self (eu, a própria pessoa) é fluídico e muda constantemente no que diz respeito ao seu próprio self e o self que você compartilha com todas as outras pessoas. Estudos de­monstraram, por exemplo, que o cérebro de pessoas que se es­pecializaram em informática e desenvolveram habilidades em videogames possui novos caminhos neurais, desconhecidos ao cérebro de pessoas que são inexperientes nessas áreas.
Se quisermos encontrar o verdadeiro self (eu, a própria pessoa) precisamos mergulhar no mundo da sombra e em seu fluxo constante. Parece uma busca perigosa, uma empreitada que faria empalidecer o maior dos heróis. No começo de seu famoso filme Hamlet, Laurence Olivier disse as palavras: "Essa é a história de um homem que não conseguia se resolver". Hamlet tem a prova de que o tio matou seu pai para ganhar a coroa da Dinamarca. Ele tem todos os motivos para buscar a vingança; no entanto, não consegue. A jornada perigosa rumo à sombra, na qual ma­tar e se vingar é normal, ameaça a existência de Hamlet, sua nobreza e estirpe civilizada. Mesmo assim, o príncipe aceita a jornada perigosa e ela o conduz ao desgosto, à aversão pró­pria, à perda do amor e aos pensamentos de suicídio — reações típicas de quando se enfrentam os monstros das profundezas. Quando ele próprio é finalmente assassinado, Hamlet aceita seu destino com alívio e uma calma sublime. As palavras do começo do filme de Olivier deveriam ter sido: "Essa é a histó­ria de um homem temente à própria sombra".
No entanto, é importante perceber que a sombra é uma criação humana. Ela foi forjada no inconsciente coletivo. Odiar um inimigo (ontem eram os comunistas, hoje são os terroristas) não é uma falha da natureza humana. Você e eu herdamos o sentimento de animosidade. Ele vem da sombra, cujo conteúdo é de construção humana. A sombra estipula o modelo de "eles", pessoas que são estranhas a "nós". Eles querem nos ferir e levar o que temos de valor. Ao contrário de nós, eles não são totalmente humanos. Nós temos o direito de lutar com eles, até mesmo de destruí-los. Esse modelo invisível, que modela a mente não de uma, mas de muitas pessoas, e sobrevi­ve por incontáveis gerações para minar o pensamento racional, é a essência do arquétipo da sombra.
Os seres humanos conscientemente criaram vastas civilizações como cenários para a sua evolução. No entanto, em ní­vel inconsciente, temos acumulado uma história que vai muito além da experiência de qualquer pessoa ou época, individual­mente. O que você chama de "eu" na verdade é "nós" em grau muito mais abrangente do que você imagina.
A prova pode ser encontrada em seu corpo. O sistema imunológico é um projeto coletivo. Sob seu osso peitoral há uma glândula chamada timo, que produz os anticorpos necessários para que você resista às infecções de germes e vírus invasores. Quando você nasce, seu timo é subdesenvolvido. Ao longo do primeiro ano de vida, você depende da imunidade do corpo de sua mãe. Mas o timo começa a crescer e amadurecer, até chegar à função e ao tamanho máximo, aos doze anos; depois vai enco­lhendo. Durante o período de crescimento, o timo lhe dá anti­corpos para as doenças que atingem toda a raça humana. Você não tem de ser infectado por doença alguma, a herança da imunidade é coletiva e, ao mesmo tempo, continuamos a aumentar o depósito conforme deparamos com novas enfermidades.
Este exemplo mostra que você não tem um corpo físico à parte. Seu corpo participa de um projeto coletivo, um processo que nunca acaba. Poderia ter escolhido outros exemplos, tais como a evolução do cérebro, mas todos eles se resumem ao DNA. Seus genes gravam o histórico do desenvolvimento hu­mano, em nível físico. Embora a genética não tenha revelado todos os segredos do genoma (conjunto de todos os genes de uma espécie de ser vivo), penso que o próximo passo não será físico ele se dará no nível da alma. E a primeira tarefa, uma vez que cheguemos lá, é renovar a própria alma. A era da sombra pode chegar ao fim quando escolhermos a união em lu­gar da separação. O destino do self dividido está em nossas mãos.”

Do livro O Efeito Sombra
 

 Que a Vida nos conduza a novos ciclos de conhecimento e maior discernimento...

Paz, luz e força na caminhada